O Vegetarianismo (parte 1)

Discutir o vegetarianismo é algo que pode tornar-se complicado devido à grande carga emocional que rodeia esta temática:
  • Se falarem com vegetarianos eles vão vos dizer que de um ponto de vista moral é o regime alimentar mais lógico a seguir,
  • Se falarem com pessoas que comem carne e peixe elas vão dizer que os animais também se comem uns aos outros e que em tempos também nos comeram, ou ainda comem se lhes dermos oportunidade.
No entanto essas questões prendem-se todas com a ética e esse será um campo que não abordaremos:
  • Se o vegetarianismo contribuí ou é um passo lógico na elevação espiritual de algumas pessoas, acho muito bem,
  • Se outras pessoas não se sentem culpadas por terem outros seres sencientes (que sentem sensações e sentimentos de forma consciente) como parte do seu cardápio e optam de livre consciência fazê-lo, então também não posso dizer que estão erradas.
No fundo este texto não serve para vos dizer o que é certo ou errado, isso é algo que cada um de nós tem que perceber por si mesmo...
Este texto serve sim, para analisar o tema do vegetarianismo de um ponto de vista da saúde física, não da espiritual ou da psicológica.
Temos também a questão da sustentabilidade, que nos iremos referir no final deste Post...
Para já vamos-nos concentrar em responder a estas questões:

  • A alimentação vegetariana pode ser saudável? 
  • Ou é insuficiente e não suprime as nossas necessidades nutricionais?
Vamos primeiro definir o que é uma dieta vegetariana e identificar algumas particularidades:
  • Vegetariano - pessoa que se alimenta exclusivamente de produtos vegetais (vegetais, cereais, leguminosas, frutas, algas, frutos secos, etc),
  • Ovolactovegetariano - pessoa que além dos produtos vegetais também incluí derivados animais na sua dieta (leite, iogurte, queijos, ovos, etc), 
  • Pessoas que não comem carne - são pessoas que comem os derivados animais, os alimentos vegetais e peixe. Não são vegetarianos, apenas não comem carne, 
  • Vegano/vegan - pessoa que segue uma dieta vegetariana e que além do seu regime alimentar, não contribuí ou adquire produtos que envolvam o uso de exploração animal como a roupa, produtos testados em animais, práticas pouco éticas para com o planeta e meio ambiente, etc. Mais do que a alimentação é uma maneira de estar/filosofia de vida.
Antes de entrarmos na parte que interessa vamos referir que uma dieta tanto vegetariana como não vegetariana só pode ser observada se for consciente e usar alimentos de qualidade.
Quer isto dizer que não vamos comparar uma pessoa vegetariana que come hambúrgueres de soja processados com uma pessoa não vegetariana que come carne ''biológica'' criada na quinta.
Da mesma forma que não podemos comparar uma pessoa que come carne preservada e conservada com químicos (enlatados) com uma pessoa vegetariana que come cereais integrais provenientes de uma agricultura biológica e devidamente germinados antes de cozinhados.
Ou seja, uma alimentação, quer seja vegetariana ou não, tem de ser consciente e utilizar alimentos como os que os nossos bisavós comiam, sem conservantes e preservantes.

  • Posto isto, é óbvio que uma alimentação vegetariana é mais restritiva, mas poderá ser saudável?
  • Terá tudo o que precisamos para suprir as nossas carências nutritivas?
Vamos ao que interessa e deitar mãos à obra...falemos de nutrientes:
Existem os macronutrientes (proteína, lípidos e carboidratos) e os micronutrientes (vitaminas e sais minerais). 
  • Os alimentos animais são, de uma forma geral, ricos em proteínas e lípidos.
  • Os alimentos vegetais são ricos em carboidratos, vitaminas e sais minerais, mas também contêm proteínas e lípidos.
Vamos analisar estes nutrientes um por um...
Proteína
Este é o ponto forte de quem defende uma alimentação que inclua produtos animais, pois a carne, o peixe e os derivados são ricos em proteína e os aminoácidos desta proteína são completos.
Para perceberem melhor este argumento remeto-vos os textos:
Aqui podemos ver que a proteína é composta de aminoácidos e que alguns destes não são produzidos pelo corpo humano (denominados de essenciais por termos de os obter através da alimentação).
O mito de que os alimentos vegetais não são completos no que diz respeito à sua composição proteica perdura, mas isto não corresponde à verdade.
Alimentos como a soja, a batata, frutos secos, entre outros, contêm todos os aminoácidos denominados de essenciais.
A questão é que para a maioria destes alimentos, as quantidades (concentração) de alguns destes aminoácidos não são animadoras.
Para contrabalançar isto criou-se a ideia de que o segredo de uma dieta vegetariana equilibrada consiste na conjugação consciente de diferentes alimentos na mesma refeição, nomeadamente de cereais com leguminosas:
  • Feijão com arroz
  • Lentilhas com milho 
  • Grão de bico com esparguete 
  • Entre outras combinações,
No entanto hoje sabe-se que o corpo tem uma chamada ''aminoacid pool'' (piscina/reserva de aminoácidos) e que não necessitamos de consumir todos os aminoácidos essenciais a todas as refeições.
Visto a todo o momento termos aminoácidos na corrente sanguínea, esta reserva está sempre a ser utilizada e renovada consoante as nossas necessidades, não sendo por isso estritamente necessário termos todos os aminoácidos essenciais representados em cada refeição.
Podemos comer o arroz numa refeição e o feijão noutra, o excesso será ''reservado'' e haverá sempre ''matéria-prima'' disponível.
Daqui resulta que, a respeito da proteína, os alimentos vegetais podem ser tão viáveis como os animais e dentro destes os mais concentrados são os cereais, as leguminosas e os frutos secos.
Vamos olhar para a tabela abaixo:
Por cada 100g
Proteína (100%)
25,4g
22,8g
12,6g
3,2g
24,1g
2,4g
18,3g
16,28g
64,1%
13,8g
60,5%
6,584g
52,25%
2g
62,5%
16,87g
70%
1,579g
65,8%
11,845g
64,73%
4,373g
17,22%
4,084g
17,9%
2,528g
20%
0,622g
19,44%
3,921g
16,23%
0,377g
15,7%
3,203g
17,5%
AAE’s (100%)
9,12g
35,9%
9g
39,5%
6,016g
47,75%
1,2g
37,5%
7,234g
30%
0,821g
34,2%
6,455g
35,27%
- Isoleucina
1140mg
12,5%
1052mg
11,69%
686mg
11,40%
165mg
13,75%
966mg
13,35%
92mg
11,21%
896mg
13,88%
- Leucina
1979mg
21,7%
1856mg
20,62%
1075mg
17,87%
265mg
22,03%
1684mg
23,28%
147mg
17,91%
1235mg
19,13%
- Valina
1254mg
13,75%
1176mg
13,07%
767mg
12,75%
192mg
16%
1271mg
17,57%
138mg
16,81%
1072mg
16,61%
- Lisina
2077mg
22,77%
2097mg
23,3%
904mg
15,03%
140mg
11,67%
713mg
9,86%
155mg
18,88%
862mg
13,35%
- Metionina
620mg
6,8%
676mg
7,51%
392mg
6,52%
75mg
6,25%
467mg
6,46%
43mg
5,24%
370mg
5,73%
- Fenilalanina
1020mg
11,18%
891mg
9,9%
668mg
11,10%
147mg
12,25%
1094mg
15,12%
116mg
14,13%
957mg
14,83%
- Treonina
943mg
10,34%
1001mg
11,12%
604mg
10,04%
143mg
11,92%
721mg
9,97%
96mg
11,7%
766mg
11,87%
- Triptofano
87mg
0,95%
256mg
2,84%
153mg
2,54%
75mg
6,25%
318mg
4,4%
34mg
4,14%
297mg
4,6%

Antes de analisarmos o gráfico vamos clarificar as siglas da primeira coluna:
  • AANE's - aminoácidos não essenciais (aqueles que o corpo consegue produzir), 
  • AAE's - aminoácidos essenciais (aqueles que necessita de ir buscar aos alimentos e que não consegue produzir),  
  • BCAA's - 3 aminoácidos essenciais (Isoleucina, leucina e valina) que formam uma cadeia ramifica (branched chain aminoacids) e que são metabolizados diretamente nos músculos (e não no fígado) e que por este motivo não necessitam de muito processamento ou digestão, sendo a sua atuação mais rápida quando ingeridos,
À luz deste esclarecimento e analisando o gráfico podemos concluir que:
  • Em termos de concentração a carne e o peixe têm os maiores valores mas os frutos secos e sementes (noz e linhaça) não ficam atrás, 
  • A distribuição qualitativa dos aminoácidos é semelhante para todos os alimentos, os AANE's compõem mais de 60% da proteína, os AAE's mais de 30% e dentro destes os BCAA's correspondem sensivelmente a 17% do total da proteína de cada alimento,  
  • Que dentro dos AAE's, a distribuição dos aminoácidos também é semelhante entre todos os alimentos, ressaltando que a concentração de triptofano é maior nos alimentos vegetais e no leite e menor na carne,
Assim podemos perceber que a proteína vegetal, no que diz respeito à sua concentração e distribuição, é uma opção viável na substituição (ou complementação) dos alimentos de origem animal.
Em relação a outras variáveis que afetam a qualidade da proteína, como a sua taxa de absorção, digestibilidade, etc, chamo a atenção para os textos cuja leitura recomendei, pois neles abordei com maior profundidade esta questão.
Da sua leitura ficamos com a perceção, no que diz respeito ao conteúdo proteico, que os alimentos vegetais na sua maioria (exceção para os amendoins, por exemplo) ficam atrás dos alimentos animais (no que diz respeito à qualidade da proteína), mas isso não tem implicações na nossa saúde nem tornam estes alimentos menos legítimos ou eficazes na supressão das nossas carências nutricionais.
Fica assim desmistificada a questão da incompletude das proteínas vegetais.
Lípidos
Para falarmos e entendermos este mal-afamado macronutriente temos de ler os textos:

Os lípidos são, portanto, um grupo muito diversificado de compostos relativamente insolúveis em água e de suma importância para a nossa saúde.
Entre outras coisas, eles são responsáveis pelo armazenamento de energia, intervenção na sinalização celular e parte integral das membranas celulares, como moléculas estruturais das mesmas.
Vamos observar alguns dos compostos mais importantes desta classe e estudar a sua presença nos alimentos: 
Os esteróis  
São encontrados na carne, leite e derivados sobre a forma de colesterol e nos alimentos vegetais como fitoesterol.
  • O colesterol, apesar da má reputação, é de extrema importância para o nosso organismo, servindo de base, entre outras coisas, para a produção da testoesterona. Mas a maior parte do colesterol presente no corpo humano é produzido pelo mesmo e não precisamos de ingerir alimentos animais para produzirmos colesterol, 
  • O fitoesterol é o ''colesterol vegetal'' e as opiniões dividem-se quanto à sua função ou utilidade no corpo humano. Alguns dizem que em quantidades ''moderadas'' tem efeitos antioxidantes, outros dizem que em ''demasia'' podem ter efeitos negativos.
As vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K)
Embora sejam vitaminas (micronutrientes), fazem parte dos lípidos pois encontram-se e são absorvidas através deles.
Estão presentes na carne, peixe e derivados, mas também podem ser obtidos nos vegetais de folhas escuras, frutas e legumes de cores intensas, leguminosas, frutos secos e cereais.
Dentro destas, a vitamina D, tradicionalmente obtida nos alimentos animais, pode ser sintetizada pelo corpo através da exposição solar.
As gorduras (triglicerídeos)
Tradicionalmente confundidas com os lípidos, mas sendo na realidade uma subclasse destas, encontram-se tanto nos alimentos vegetais como animais.
Estas são compostas por ácidos gordos os quais podem ser saturados ou insaturados, classificação que é atribuída consoante a sua concentração na gordura.
Assim, gorduras com maior concentração de ácidos gordos saturados irão chamar-se gorduras saturadas, acontecendo o mesmo para as insaturadas.
A gordura saturada é tida normalmente como de origem animal, mas há exceções como o óleo de coco ou de palma.
É tida também como prejudicial à saúde por os alimentos associados a esta (maioritariamente animais) conterem colesterol, mas na realidade por ser mais resistente à oxidação estas gorduras são as mais saudáveis, especialmente para cozinhar (mais resistentes ao calor, suportam o mesmo sem alterarem a sua composição).
Dentro das gorduras insaturadas temos:

  • As monoinsaturadas, presentes em gorduras como o azeite da azeitona, mas também de outros frutos, desde que extraído na primeira prensagem e por métodos mecânicos/tradicionais. São consideradas mais saudáveis (mas também mais caras), que os óleos (poliinsaturados) para cozinhar. 
  • As poliinsaturadas são menos resistentes à oxidação, mais perecíveis e portanto nada aconselháveis para cozinhar. Em vez disso devem ser obtidas através do consumo dos próprios alimentos que os contêm (frutos secos, cereais, sementes e peixes de águas frias).
Dentro dos poliinsaturados temos o Ómega-3 e o Ómega-6, que são essenciais (não produzidos pelo nosso organismo).
Após leitura do Post ''Óleo de peixe / Ómega-3...sim ou sopas?'', podemos perceber que:

  • Não é o Ómega-3 que é importante, mas sim o rácio entre Ómega-3 e Ómega-6, 
  • Devido a uma alimentação processada/manufaturada com óleos vegetais (refinados), ingerimos muita quantidade de Ómega-6, o que aumenta a nossa disposição para processos inflamatórios que estão na base das doenças mais mortíferas das últimas décadas,  
  • Os alimentos vegetais como sementes de linhaça ou chia são ricas em Ómega-3, especificamente ALA que pode ser convertido pelo corpo em EPA/DHA, que são os Ómega-3 de cadeia longa contidos nos peixes de águas frias tão publicitado pelas empresas de suplementos,  
  • Não precisamos de comer peixe para termos os nossos níveis de Ómega-3 equilibrados.
Vamos observar o quadro seguinte:
Por cada 100g
Colesterol
82mg
55mg
424mg
10mg
-
-
-
Fitoesterol
-
-
-
-
108mg
-
-
Gordura (100%)
18g
0,9g
10,6g
3,3g
59g
0,4g
42,2g
- Saturada
7,3g
 40,6%
0,2g
 22,2%
3,3g
 31,1%
1,9g
 57,6%
3,4g
 5,8%
0,1g
 25%
3,7g
 8,8%
- Monoinsaturada
8,8g
48,9%
0,1g
 11,1%
4,1g
38,7%
0,8g
24,2%
15g
25,4%
-
7,5g
17,8%
- Poliinsaturada
0,5g
4,4%
0,3g
33,3%
1,4g
13.2%
0,2g
 6,1%
35,1g
 59,5%
0,2g
50%
28,7g
68%
- Ómega-3
18mg
172mg
78mg
75mg
2006mg
119mg
22813mg
- Ómega-6
411mg
6mg
1188mg
120mg
33071mg
51mg
5911mg
Vitaminas:






- A
-
47IU
586IU
102IU
40IU
1548UI
-
- D
-
-
-
40IU
-
-
-
- E
0,5mg
0,8mg
1mg
0,1mg
1,8mg
1,5mg
0,3mg
- K
3mcg
0,1mcg
0,3mcg
0,2mcg
2,7mcg
141mcg
4,3mcg

Da análise deste quadro podemos concluir que:
  • Os alimentos animais contêm colesterol e os vegetais o fitoesterol, 
  • Os frutos secos e sementes têm mais quantidade de gordura do que os alimentos animais mas isto não será verdade para o restantes vegetais (bróculos, etc),  
  • A gordura do alimentos animais é maioritariamente saturada e monoinsaturada (exceto nos peixes) e nos vegetais é monoinsaturada e poliinsaturada,  
  • O Ómega-3 pode ser encontrado tanto em alimentos vegetais como animais, assim como o Ómega-6...os frutos secos e sementes contêm maior quantidade destes do que os produtos animais,  
  • As vitaminas lipossolúveis (à exceção da vitamina D) podem ser encontradas tanto em animais como em vegetais, sendo que a vitamina D é sintetizada pelo corpo através da exposição ao sol.
Apesar de ainda se acreditar que os óleos para cozinhar são boas fontes de gorduras poliinsaturadas e que as gorduras saturadas são prejudiciais à nossa saúde, o paradigma aos poucos vai se alterando.
Empresas como a Becel, entre outras, têm todo o interesse em promover este tipo de desinformação, apelidando de más algumas gorduras e chamando de boas as suas margarinas vegetais.
Na realidade, hoje começa-se a perceber que a gordura saturada é a melhor para cozinhar e que a melhor maneira de ingerir gorduras poliinsaturadas é através de alimentos frescos e não de óleos refinados e gorduras trangénicas, suspeitos de estar na base da perpetuação desta população doente e obesa que observamos no dia-a-dia e que estas marcas promovem.
Mais de 80% da alimentação (leia-se veneno) que as pessoas hoje em dia adquirem nos supermercados tem estes óleos (gorduras refinadas e transgénicas) na sua composição ou processamento, assim como toda a comida que adquirimos em restaurantes/cafés, que é frita ou cozinhada neles.
Desta forma há espaço para as empresas de suplementos publicitarem e venderem os seus óleos de peixe, com base numa suposta carência de Ómega-3 na nossa dieta.
Não temos falta de Ómega-3, este existe em alimentos para além dos peixes de água fria, temos isso sim, excesso de comida de má qualidade (lixo) impregnada com estes óleos baratos e nocivos que nos enchem de Ómega-6 e desequilibram os rácios de Ómega-3/Ómega-6 que deveríamos ter para ser saudáveis.
Não há melhor comida do que alimentos frescos preparados e cozinhados por nós e no que diz respeito aos lípidos, a alimentação vegetariana é uma fonte eficiente e eficaz de os adquirir.
Próximo post vamos comparar a composição de carboidratos e dos micronutrientes (vitaminas e sais minerais) da dieta vegetariana com uma dieta omnívora e analisar os pontos fortes e os menos fortes.