Lípidos, gorduras e colesterol (parte 2)

Segunda parte do texto sobre os lípidos, na primeira parte vimos que:
  • Os lípidos são um grupo heterogéneo de vários componentes, 
  • Muitas vezes confundimos lípidos com gordura (também chamada de triglicerídeos) mas que esta é apenas uma dos seus componentes, 
  • Existe uma gordura ''artificial'' criada pela indústria alimentar (gordura trans ou hidrogenada) que é nociva à nossa saúde e que serve o propósito de prolongar a validade dos produtos nas prateleiras dos supermercados.
Nesta segunda parte vamos perceber o que é o colesterol, os fosfolípidos e as lipoproteínas.
Colesterol
O Colesterol pertence ao grupo dos esteróis, um grupo de compostos solúveis em gordura encontrado nas membranas celulares e transportado no plasma sanguíneo de todos os animais. É um componente essencial na manutenção da fluidez e integridade estrutural das membranas celulares dos mamíferos.
O colesterol é o principal esterol sintetizado pelos animais, as plantas apresentam um tipo de composto similar chamado de fitosterol.
Devido à sua forma e configuração singular o colesterol é usado primariamente para construir/manter células e algumas hormonas (estrógenio, progesterona, testoesterona, cortisol, etc) e não para armazenamento ou fonte de energia
Algumas pesquisas recentes indicam que o colesterol pode atuar como um antioxidante e ajuda na fabricação da bílis, sendo também importante para o metabolismo das vitaminas lipossolúveis.  Ele é o principal precursor para a síntese de vitamina D e de várias hormonas esteroides (cortisol, aldosterona, progesterona, estrógenos, testosterona e derivados). Recentemente também tem sido relacionado a processos de sinalização celular e redução da permeabilidade da membrana plasmática ao hidrogênio e sódio.
Vamos olhar para uns números:
  • Um homem que pese 68kg produz, em média, 1g de colesterol por dia,
  • No seu corpo encontram-se 35g de colesterol, a maior parte das quais dentro das membranas celulares, 
  • Nos Estados Unidos, a ingestão média diária de colesterol para este homem seria de 307mg (0,307g), menos de um terço diário do colesterol produzido pelo corpo, 
  • O colesterol ingerido via alimentação é esterificado mas o corpo utiliza maioritariamente colesterol na sua forma livre, seja para produzir as lipoproteínas (responsáveis pelo transporte dos lípidos na corrente sanguínea), seja para ser usado pelas nossas células, 
  • Por estas razões o colesterol ingerido é fracamente absorvido (a maior parte dele é rejeitado), no entanto é sempre necessário algum colesterol esterificado para construir as lipoproteínas acima referidas, 
  • As células do nosso corpo libertam colesterol na forma esterificada, a sua função prende-se com o ‘’empacotamento’’ do colesterol, tornando-o mais propício a ser transportado dentro do nosso corpo, 
  • O colesterol também é reciclado no nosso corpo e quando ingerido em grandes quantidades (via alimentação), ativa-se um mecanismo de regulação que diminui a sua produção endógena.
Ou seja:
  • O corpo prefere produzir o seu próprio colesterol do que utilizar o que ingere na alimentação, 
  • O corpo recicla o próprio colesterol que produz e que utiliza, 
  • Mesmo se comermos muitos alimentos com grandes quantidades de colesterol o corpo autorregula-se diminuindo a sua própria produção para manter os níveis equilibrados.
Porque estão as doenças cardiovasculares correlacionadas com altos níveis de colesterol?
Porque temos níveis tão altos de colesterol no sangue a nos entupirem as artérias?
A resposta a esta pergunta será analisada na descrição das lipoproteínas, que vamos observar mais à frente. Fica aqui uma tabela de alguns alimentos que contêm colesterol e os seus valores:

Alimentos (g)
Colesterol (mg)
Triglicerídeos (g)
Saturados (g)
Hidratos Carbono (g)
Bife de vaca
74
23
9
0
Bacon cru
68
45
15
0
Galinha crua
79
29
8
0
Caranguejo cru
78
1
0
0
Bacalhau cru
43
1
0
0
Manteiga c/sal
215
81
51
0
Queijo Edam
89
28
18
1
Ovo cru
423
10
3
1
Leite (1%tg)
5
1
0,6
5
Pizza
27
11
5
31
Cheeseburguer
60
21
9
35

Fosfolípidos:
São lípidos constituídos por uma molécula de glicerol (álcool), duas cadeias de ácidos gordos (uma saturada e uma insaturada), um grupo fosfato e uma molécula polar ligada a ele.
São moléculas anfipáticas pois possuem uma cabeça (grupo fosfato e o glicerol) que é polar ou hidrofílica (têm afinidade com a água) e uma cauda (constituída por cadeias de ácidos gordos) apolar ou hidrofóbica, isto é, que repele a água.
Não vamos adiantar muito mais sobre este tipo de lípido mas vamos ressaltar que é esta qualidade hidrofílica (numa extremidade) e hidrofóbica (no outro extremo) que faz com que elas sejam tão importantes na formação das lipoproteínas, cuja função é transportar as gorduras (que não se misturam com água) num meio aquoso (sangue e linfa).
A sua extremidade hidrofóbica faz contato e mantém enclausurados os lípidos no interior desse meio de transporte (lipoproteínas), enquanto a outra extremidade (hidrofílica) faz o contato com o meio aquoso (sangue ou linfa), permitindo as estas lipoproteínas ‘’navegar’’ na corrente sanguínea e chegar ao seu destino. 
Lipoproteínas:
A lipoproteína é um agregado molecular que contém proteínas e lípidos.
Como os lípidos não podem ser transportados no sangue e linfa (azeite não se mistura com água), o corpo precisou de fabricar um meio de transporte para levar estes compostos ao seu destino, este meio de transporte chama-se lipoproteína e é criado através da emulsificação dos lípidos pelas proteínas, isto é, da sua interacção criam uma partícula complexa que é solúvel em água e que transporta no seu interior os triglicerídeos e o colesterol (esterificado).
O revestimento externo desta partícula é feito de proteínas, fosfolípidos e colesterol livre (não esterificado), e a parte proteica é chamada de apoproteína.
No organismo humano, este composto é sintetizado no fígado e no intestino delgado.
Relevantes para o nosso post temos:
Nome
Densidade
Tamanho
Produção
Quilomicrons
Menor
Maior
Metabolismo endógeno
VLDL (very low density lipoprotein)
Muito baixa
grande
Metabolismo exógeno
IDL (intermediate density lipoprotein)
Intermédia
Intermédio
Metabolismo exógeno
LDL (low density lipoprotein)
Baixa
Pequeno
Metabolismo exógeno
HDL (high density low protein)
Maior
Menor
Metabolismo reverso
Se repararem no quadro a densidade e o tamanho são grandezas de uma relação inversa:
  • Quanto menor for a densidade de uma lipoproteína maior o seu tamanho (quilomicrons),
  • Quanto maior a densidade de uma lipoproteína menor o seu tamanho (HDL),
Vamos então perceber como isto está envolvido no entupimento dos vasos sanguíneos. Quando falamos de bom e mau colesterol não estamos a referirmo-nos ao colesterol em si (que é sempre o mesmo), mas às lipoproteínas HDL e LDL respetivamente.
Uma remove detritos e excessos dos vasos sanguíneos e a outra é mais propícia a deixar componentes capazes de interagir (oxidar) com os radicais livres e criar esses entupimentos.
Vamos fazer um apanhado dos percursos que estas lipoproteínas dão, para entendermos melhor estes processos.
Metabolismo Exógeno:
  • É o metabolismo que lida com os lípidos que ingerimos na alimentação,
  • Os quilomicrons são produzidos no intestino e são responsáveis por transportar os lípidos que comemos, 
  • Iniciam a sua viagem na linfa (são grandes demais para passarem nos capilares sanguíneos), 
  • São levados posteriormente às grandes veias e circulação sanguínea onde transportam as gorduras, colesterol e fosfolípidos para serem absorvidos, armazenados (no tecido adiposo) ou transformados em energia (nos músculos), 
  • No final da sua viagem, dirigem-se ao fígado e entregam o seu colesterol (remanescente) para ser transformado em ácido biliar que irá para o intestino delgado ajudar a digerir os lípidos (sítio onde iniciou esta viagem), 
  • Após esta última entrega ele é decomposto.
Metabolismo Reverso:
  • É produzido pelo fígado e segue pelo sangue, percorrendo o corpo todo, retirando o colesterol (dos músculos e não só) e a gordura acumulada dos tecidos adiposos,
  • A HDL é a boa da fita, quando fazemos dietas e treinamos muito para emagrecer são estas lipoproteínas as nossos melhores amigas, pois vão buscar as gordurinhas armazenadas para serem transformadas (queimadas) em energia, 
  • Também apanham pelo caminho colesterol e outros componentes suscetíveis de entupirem as veias, 
  • Levam o colesterol para os órgãos sexuais onde serve de base para a criação das nossas hormonas, 
  • O final desta viagem termina no fígado com a entrega do colesterol, triglicerídeos e fosfolípidos que sobraram para reaproveitamento, reciclagem ou armazenamento, 
  • Assim que se encontram sem ''passageiros'' estas lipoproteínas não são decompostas, retomam a viagem e tudo se repete...
Metabolismo Endógeno:
  • Este metabolismo lida com os lípidos criados, reciclados ou armazenados no fígado,
  • O fígado desempenha um papel central na gestão dos açúcares e gorduras, pois quando sobra glicose da digestão (o açúcar do pão, massa, doces, sobremesas, etc), esta é convertida em triglicerídeos (através de um complexo ciclo de transformações químicas), de forma a armazenar mais energia num menor espaço, pois como vimos anteriormente, cada molécula de triglicerídeo (gordura) fornece 9kcal, mais do dobro do que a molécula de glicose, 
  • Se sobrar muita gordura (triglicerídeos) da nossa digestão, esta pode ser decomposta e armazenada no fígado (células hepatócitas) ou juntar-se aos triglicerídeos anteriormente descritos, 
  • Estes triglicerídeos irão integrar a lipoproteína chamada VLDL (em conjunto com algum colesterol, fosfolípidos e apoproteínas).

O VLDL irá dar origem aos problemas associados ao colesterol:
  • Esta lipoproteína segue na circulação sanguínea e vai deixando triglicerídeos nos músculos (que os convertem em energia) e no tecido adiposo (que os armazena), diminuindo assim de tamanho e tornando-se mais densa, ponto onde muda de nome para IDL,
  • Algures no seu percurso o IDL cruza-se com o HDL e recebe colesterol em troca de triglicerídeos e fosfolípidos, diminuindo ainda mais de tamanho e aumentando ainda mais a sua densidade, ponto onde muda novamente de nome, desta vez para LDL
  • Mais de metade da LDL é composta de colesterol,

Diferentes tipos de LDL:
  • Existe mais de um tipo de LDL com tamanhos e densidades diferentes, mas para simplificar vamos apenas dividir em duas, a LDL(a) (maior e menos densa) e a LDL(b), menor e mais densa,
  • A LDL(a) tem funções importantes, entre as quais o fornecimento de colesterol às células para todas as finalidades que vimos no HDL (neste sentido são semelhantes, fazem uma espécie de reforço), 
  • No final da sua viagem a LDL(a) é retirada da circulação no fígado onde os componentes que sobraram são reciclados, armazenados ou reutilizados, 
  • A LDL(b) é mais pequena e densa e portanto capaz de penetrar pelas brechas do endotélio (membrana semipermeável que constituí a camada celular interna dos vasos sanguíneos), 
  • Assim que endótelio é transposto, a LDL(b) entra em contato com radicais livres e sofre um processo de oxidação, esta intrusão despoleta um mecanismo de defesa onde os monócitos (glóbulos brancos/células defensivas) saem da circulação sanguínea e penetram no endotélio (transformando-se em macrófagos), 
  • Os macrófagos tentam ingerir as partículas da LDL(b) oxidadas, resultando uma cadeia de respostas inflamatórias onde a HDL tenta remover estes compostos oxidados que estão nos macrófagos, 
  • Estas respostas podem não ser suficientes para evitar a formação de placas de ateroma e de células espumosas que deixam restos de compostos oxidados (entre os quais colesterol) nas paredes das artérias.
A partir daqui gera-se um efeito ''bola de neve'' com mais inflamação que atrai mais glóbulos brancos que entupem mais as artérias, tornando-as mais espessas e menos flexíveis.
A Aterosclerose é o nome da doença inflamatória crónica caracterizada por esta formação de ateromas dentro dos vasos sanguíneos:
  • Os ateromas são placas compostas principalmente por lípidos e tecido fibroso que se formam na parede dos vasos,
  • O volume dos ateromas aumenta progressivamente, podendo ocasionar obstrução total em algum ponto do vaso,
Este processo leva anos e é a causa dos problemas cardiovasculares.  
Mas qual é a causa do aumento deste LDL(b)?  
Se o corpo não aproveita a maior parte do colesterol presente na nossa comida, porque razão é produzido tanto colesterol para se formarem este tipo de lipoproteína? Porque não baixa ele a produção quando este processo atinge níveis excessivos? 
A LDL(b) é uma lipoproteína composta (também) por colesterol que só é produzida se houver outros compostos (além do colesterol) para transportar:
  • O colesterol é só um intermediário neste processo e tal como os fosfolípidos e as apoproteínas, eles apenas são recrutados para formar as Lipoproteínas quando existem triglicerídeos (gordura) para serem transportados,
  • Não havendo excesso de triglicerídeos, não haveria tantos compostos a serem transportados no metabolismo endógeno nem esta produção excessiva e maligna de lipoproteínas.
O problema está na gordura ou no açúcar que comemos?
  • Eu diria que comemos muita comida e de má qualidade, mas os culpados não são as gorduras nem o colesterol que encontramos nos alimentos saudáveis e milenares (carne, ovos, peixe, azeite, manteiga, etc) e que no seu estado natural são benéficos e necessários.
Na última parte deste post vamos perceber porque estamos cada vez mais doentes, obesos, diabéticos e sujeitos a estas doenças cancerígenas e cardiovasculares.
Conhecimento é poder