O Jejum


Jejum é a livre abstinência ou redução da ingestão de alimentos e bebidas, por um determinado período de tempo. 
O jejum absoluto ou jejum seco inclui necessariamente a abstinência de bebidas e líquidos, pois muitas vezes quem jejua não excluí a água ou os chás.
Outros tipos de jejuns podem ser parcialmente restritivos, limitando apenas determinado alimento ou substância.
Considera-se que uma pessoa está a jejuar passadas de 8 a 12 horas após a última refeição. No entanto, os diversos ajustamentos metabólicos que ocorrem durante o jejum iniciam-se de 3 a 5 horas após a absorção desta.
Aqui reside todo o cerne da questão…no tempo.
Quando falamos em jejum pensamos na sua forma tradicional, algo penoso e desafiante que os ascetas religiosos praticavam durante os vários dias que passavam sem comer ou com uma severa restrição calórica.
Mas tecnicamente falando, assim que fica digerida a última refeição inícia-se o jejum. Aqui podem surgir mal-entendidos, pois todos nós enquanto dormimos não ingerimos alimentos, o que se traduz num intervalo de 6 a 8 horas diárias sem comer. Porém isto não significa que estamos a fazer um jejum.
Tecnicamente falando, iniciam-se os ajustamentos metabólicos próprios do estado de jejum, mas é só mesmo isso, um começo.
Vamos clarificar esta definição:
  • Vamos chamar jejum à livre e consciente abstinência de alimentos durante várias horas e saltando várias refeições (mínimo de 24h),
  • Vamos chamar alimentação restringida temporalmente/jejum intermitente (time restricted eating) a todas as outras formas de jejum e planos alimentares que limitam esse período a uma janela inferior a 24h.
Como veremos mais adiante, à medida que o tempo se prolonga as adaptações fisiológicas vão aumentanto e intensificando, sendo o impacto destas diferente de indivíduo para indivíduo.
Aproveito aqui para introduzir a regra de ouro:
  • Os resultados encontrados com o mesmo procedimento podem variar de pessoa para pessoa consoante a sua idade, género, estado de saúde nutricional/mineral e vitamínico, historial de actividade física, genética (metabolismo e biotipo), exposição ao stress emocional/químico/ térmico e de estilo de vida, bem como da sua atitude mental. 
Quando falar da regra de ouro, é a isto que me refiro, cada um reage de maneira diferente às dietas, treinos, etc.
Definições clarificadas, vamos analisar o impacto da abstenção de alimentos no nosso organismo, o que isto representa, traçar uma linha cronológica para ver a evolução destas adaptações à medida que se prolonga o jejum e fazer um paralelo com a nossa evolução enquanto espécie para perceber qual o sentido das referidas adaptações metabólicas. 
No final vemos o que os estudos dizem e retiramos conclusões.
Restrição inevitavelmente calórica
Restrição calórica é a diminuição do número de calorias ingeridas para determinado período.
Independentemente das horas a que eu comer, se ingerir menor quantidade de alimentos ou modificar a qualidade dos mesmos (menor carga glicémica por exemplo), no final das 24 horas tenho uma restrição calórica. Para um jejum tradicional esta é total, pois 24 horas sem ingestão de alimentos equivale a zero ingestão de calorias.
Na alimentação restringida temporalmente (jejum intermitente), em princípio isto também acontece, pois a janela de alimentação é reduzida para 12/8 horas. Menos tempo para comer traduz-se em menor número de refeições e se a dieta for consciente e equilibrada (sem comidas processadas/fast-foods/etc), acabamos por ingerir menos calorias do que num dia ''normal'' sem jejuar.
Se isto acontecer de uma forma constante, ao fim de certo período de tempo perdemos peso, partindo do principio que tudo o resto se manteve constante (actividade física, descanso, sono, etc).
A glucose e os requisitos energéticos
Os requisitos/exigências energéticas de um corpo são compostas por:
  • A taxa metabólica basal (TMB), um cálculo matemático (não necessariamente exacto) da quantidade calórica que o corpo necessita em vinte e quatro horas,  para se manter nutrido sem prejudicar o funcionamento dos principais órgãos,
  • Pelo nível de actividade física que desenvolvemos ao longo do dia.
Ou seja, correspondem à energia necessária para o normal funcionamento dos órgãos mais a actividade que desenvolvemos voluntária/recreativamente.
A energia é obtida através dos nutrientes que ingerimos nos alimentos, quando ingerimos mais do que o que as nossas necessidades momentâneas o nosso corpo acumula-os e constrói as suas reservas.
A fonte de energia mais acessível e metabolizada por todas as células é a glucose. 
Os macronutrientes contidos nos alimentos podem ser decompostos ou transformados nestas moléculas:
  • Os carboidratos são formas mais complexas de glucose e podem ser facilmente decompostos,
  • Os restantes macronutrientes podem ser metabolizados no fígado de uma forma menos directa e que envolve maior consumo de energia para realizar essa conversão, 
  • A glucose pode ser armazenada sob a forma de glicogénio (no fígado ou músculos) ou convertida em ácidos gordos e armazenada no tecido adiposo, 
  • 25% do consumo total de glucose no corpo ocorre no cérebro (18% da TMB), pois este é dependente de nutrientes que consigam passar a barreira hematoencefálica (BHE), defesa natural que protege e dificulta a entrada de moléculas.
Linha cronológica
Durante curtos períodos de abstinência de alimentos (alimentação restringida temporalmente/jejum intermitente):
  • O corpo humano utiliza primeiro os conteúdos do tracto intestinal assim como das reservas de glicogénio armazenadas no fígado e tecido muscular, que são consumidas nas primeiras 24 horas,
  • Após o esgotamento das reservas de glicogénio e durante os próximos 2-3 dias, o corpo começa a decompor as gorduras armazenadas no tecido adiposo. Estas são transformadas  (no fígado) em glicerol e ácidos gordos livres, sendo estes por sua vez convertidos em glucose, num processo chamado de neoglucogénese (formação de glucose a partir de substâncias não glucídicas),
  • Para garantir que toda a glucose remanescente é encaminhada para o cérebro, o uso da mesma é desactivado nos restantes tecidos assim que estes começam a utilizar ácidos gordos como fonte de energia,
  • Pequenas quantidades de massa magra e proteínas obtidas do tecido muscular e outros tecidos podem também ser utilizados para providenciar glucose para o cérebro,
Após prolongados períodos de jejum (jejum tradicional):
    • Após 2 ou 3 dias de jejum o fígado começa a produzir corpos cetónicos de precursores obtidos da desagregação dos ácidos gordos. Estes corpos cetónicos conseguem passar a BHE e ser utilizados pelo cérebro como fonte de energia (cortando em parte com a sua necessidade de glucose). Os ácidos gordos podem ser usados directamente pela maior parte dos tecidos existentes nos nossos corpos. 
    • 30% da energia utilizada passa a derivar dos corpos cetónicos e após 4 dias este número sobe para 75%. Os 25% restantes que derivam de glucose são obtidos pelo fígado através da transformação do glicerol (derivativo da decomposição dos triglicerídeos) e da decomposição da proteína do tecido muscular,
    • O corpo fica sem gordura corporal disponível e começa a decompor cada vez mais proteínas que libertam aminoácidos na corrente sanguínea, por sua vez reconvertidos em glucose pelo fígado. Ocorre uma significativa perda de massa muscular, utilizada como fonte de energia,
    • O corpo pode seleccionar quais as células de onde pode decompor a proteína, são necessárias de 2 a 3g para produzir 1g de glucose, 
    • O estado de inanição ocorre quanto as reservas de gordura se esgotam e a única fonte de energia disponível é a proteína. Decorrido algum tempo nesta condição a perda de proteína afecta a função dos órgãos levando à morte, normalmente por arritmia ou paragem cardíaca.
    Adaptações metabólicas
    Se o jejum se prolongar, o corpo responde gerando uma série de mudanças adaptativas bioquímicas e fisiológicas em resposta à falta de comida.  
    Metabolismo celular refere-se ao conjunto de todas as reacções químicas que ocorrem nas células, responsáveis pelos processos de síntese e degradação dos nutrientes que constituem a base da vida, permitindo o crescimento e reprodução das mesmas, mantendo as suas estruturas e adequando respostas aos seus ambientes.
    Ou seja, quando o corpo percebe que não estão a ser ingeridos nutrientes e este período se estende, entra em modo defensivo e reduz a sua actividade celular de forma a preservar energia e garantir a sua sobrevivência.
    Porém, acredita-se que até às primeiras 16/18 horas de jejum (ter em conta a regra de ouro) o corpo acelera o metabolismo ao invés de reduzi-lo.
    Isto talvez faça sentido numa óptica de evolução histórica, pois durante milénios os nossos antepassados não tiveram supermercados nem frigoríficos com comida disponível quando sentiam fome e longos intervalos entre refeições eram prováveis de ocorrer.
    Daqui podia resultar que quando sentissem fome o corpo acelerasse o metabolismo de forma a deixá-los mais despertos e activos, gerando motivação e maior predisposição para encontrarem alimento. Pensem em acordar após 6 ou 8 horas sem comer, sem comida, firgoríficos ou supermercados...teriam que literalmente correr atrás do vosso pequeno-almoço, seja a caçá-lo ou a recolhê-lo (raízes, bagas, frutas).
    Se este tempo se prolongasse e as expectativas de encontrar alimento diminuíssem, o organismo entrava em modo de defesa/poupança energética através da diminuição do seu metabolismo,  para aumentar o seu tempo de vida e maximizar a chance de encontrar comida.
    O que os estudos dizem
    Agora que sabemos como responde o corpo à privação de alimentos, temos de nos perguntar...porque haverá uma pessoa de voluntariamente aderir a esta prática?
    Existem vários motivos para isso: religiosos, espirituais, de contestação, etc, mas o que nos interessa aqui é analisar do ponto de vista da saúde e mais propriamente da saúde física.
    Será que a prática do jejum, regular ou pontual, curta ou prolongada, pode trazer benefícios à nossa saúde?
    Vejamos os resultados referidos pelos estudos:
    • Perda de peso
    • Estimulação da secreção da hormona de crescimento,
    • Normalização da sensibilidade à insulina,
    • Normalização dos níveis da hormona grelina,
    • Possibilidade de redução dos níveis de triglicerídeos,
    • Possibilidade de desaceleramento do processo de envelhecimento e aumento da longevidade,
    • Possibilidade da estimulação da função cerebral e prevenção de doenças neurodegenerativas,
    • Possibilidade de auxiliar na prevenção do cancro e aumentar a eficácia da quimioterapia,
    • Entre outros...
    As melhorias relacionadas com a insulina, grelina, perda de peso e possível redução dos níveis de triglicerídeos (ou melhoria do perfil lipídico) são prováveis pela simples componente da restrição calórica já mencionada. 
    Isso por si só já explica estas alterações benéficas nas populações estudadas que podem ser maximizadas num jejum intermitente/alimentação restringida temporalmente. Este adiciona à equação uma possível aceleração do metabolismo, actuando de forma sinérgica e reforçando estes efeitos. 
    Num jejum prolongado o mesmo pode não acontecer, mas para se provar isto teria que se fazer um teste com as duas populações em simultanêo e mais uma sem jejuar para servir de despiste. Segundo o que li ainda não foi efectuado.
    No entanto, a estimulação da secreção de hormona de crescimento parece-me ser mais significativa num jejum prolongado, pois até 16 horas de jejum duvido que haja grande diferença na produção desta hormona comparativamente com a que produzimos sem jejuar. Isto prende-se com o facto de o jejum estimular esta produção para evitar a perda de massa magra, questão que tal como vimos anteriormente só é pertinente a partir das 48 horas de jejum.
    Todas as outras variáveis são apenas possibilidades, longe de ser confirmadas e por isso não as vou considerar. São necessárias mais e melhores pesquisas, pois as presentes são, de uma forma geral, inconclusivas.
    Feitas maioritariamente com populações doentes ou severamente comprometidas, obesas, diabéticas, etc, geram resultados difíceis de validar, pois qualquer alteração na sua rotina irá resultar em benefícios se mantivermos o resto constante:
    Até a própria produção hormonal está mais intrinsecamente ligada à qualidade do sono e redução do stress do que à alimentação e eu acredito que uma melhoria destes parâmetros nos individuos testados faria mais pelo aumento da segregação da hormona de crescimento do que propriamente um jejum.
    A solução tem de passar por fazer testes em indivíduos saudáveis.
    Conclusões: 
    Jejum tradicional (mais de 24 horas):
    • O jejum prolongado/tradicional talvez seja benéfico feito de forma pontual, actuando como uma espécie de limpeza e ''reset'' se reduzirmos a nossa actividade fisíca para nos dedicarmos a isto (sem stress, sem grandes esforços físicos, feito num final de semana ou numas curtas férias). Bom para quem precisa de fazer uma pausa na sua vida, reflectir e encontrar novos caminhos ou significados,
    • Do ponto de vista da saúde física talvez feito esporadicamente possa oferecer benefícios, mas não será algo para se fazer semanalmente ou frequentemente. Acho que o seu potencial psicológico/espiritual é maior e mais significativo do que o físico. 
    Não aconselho um jejum prolongado (mais de 24 horas) a quem queira simplesmente ''perder peso''. 
    Há maneiras bem mais práticas, eficientes e confortáveis de atingir este objectivo, tais como:
    • Diminuir a ingestão de alimentos de grande carga glicémica (cereais, entre outros) da nossa alimentação,
    • Eliminar  comidas processadas, doces e fritos, enlatados, preservantes, etc,
    • Fazer refeições combinando alimentos ricos em proteína (carne, peixe, ovos ou leguminosas) com vegetais de baixa carga glicémica,
    • Fazer exercício de forma regular (andar a pé, ir de bicicleta para o trabalho, preferir escadas a elevadores, etc),
    • Privilegiar o descanso, a qualidade do sono e a tranquilidade/paz de espírito, 
    Todos estes itens trarão mais resultados que qualquer dieta ou jejum da moda.
    O conhecimento que leva a um corpo saudável e atlético não é nenhum segredo, mas é tão óbvio e simples que se torna invisível e negligenciado ao olhar incrédulo do comum mortal, ofuscado pela máquina de marketing de uma indústria alimentar e farmacêutica multi-milionária que promove a doença e o lucro e o afasta do seu conhecimento instintivo sobre a alimentação.
    Alimentação restringida temporalmente/jejum intermitente:
    • Em populações que lutam para perder peso ou que têm problemas neste campo pode ser uma mais valia, juntar a restrição calórica daqui resultante com a possível aceleração metabólica desta restrição temporal pode ter um efeito sinérgico,
    • Seguindo o mesmo raciocínio, um espaço temporal menor para fazer refeições pode ajudar a regular a sensação de saciedade de pessoas que estão sempre a comer e a fazer snack/lanches,
    • Mas para pessoas que já têm intervalos de tempo prolongados entre refeições (mais de 4 horas), fazer este jejum pode significar ingerir apenas 3 refeições diárias e sofrer uma restrição calórica mais severa (a não ser que aumentem bastante a quantidade de comida de cada refeição), o que talvez não seja aconselhável a quem seja saudável e tenha uma vida moderadamente activa,
    • Na mesma lógica, pessoas que querem aumentar ou manter o peso/volume/massa muscular que já têm, provavelmente não optimizam os seus resultados com este tipo de jejum.
    No fundo este tipo de jejum parece beneficiar mais quem está desregulado e doente do que propriamente quem se encontra num equilíbrio homeostático, que não necessita de perder peso ou regular o seu sistema hormonal.
    Temos que perceber que o corpo reduz a actividade metabólica quando deixa de ser alimentado,  a partir das 4-5 horas após a última refeição ele começa a desligar aos poucos o que não é essencial, a utilizar outros recursos energéticos (gordura) e a ''reciclar'' células danificadas ou não essenciais (autofagia) para a produção de energia. 
    Ou seja, reduz os seus gastos calóricos e nestas condições não faz sentido criar massa muscular que exige gastos energéticos na sua manutenção.
    Daqui pode resultar uma ''limpeza'' do organismo, um rejuvenescimento das células, mas o prolongar desta situação põe em causa outros processos metabólicos e em ultima instância torna-se insustentável.
    Imaginem que o vosso telemóvel está com 15% de bateria, que estão à espera de uma chamada importante e que por qualquer motivo não vos é possível carregá-lo...o que fazem? 
    Desligam o wi-fi, gps, bluetooth e tudo o que não for essencial para poderem receber a tal chamada,Assim como o corpo, que fecha as portas ao crescimento muscular e à manutenção da massa muscular não essencial.
    Quem quer ganhar ou manter massa muscular beneficia mais em fazer refeições equilibradas (em quantidade e qualidade) num intervalo de tempo maior (mínimo de 3 horas). Desta forma garante que tem sempre nutrientes disponíveis para a construção muscular (síntese proteica). Segundo o Vince, a proteína demora 3 horas a ser completamente decomposta em aminoácidos e estar disponível na corrente sanguínea e 4 horas para ser completamente distribuída/armazenada/utilizada.
    No entanto vale aqui a regra de ouro, há pessoas que acordam sem fome e não comem pequeno-almoço e no outro extremo há pessoas que fazem do pequeno-almoço a sua refeição mais forte do dia:
    • Não faz sentido a uma pessoa que acorda sempre sem fome forçar-se a comer uma refeição e literalmente enfiar comida goela abaixo,
    • Da mesma forma que não faz sentido uma pessoa saudável (não obesos, diabéticos, etc) que acorda cheia de fome ter que esperar 3 horas para tomar o pequeno-almoço porque está num ''jejum intermitente''.
    Eu acho que devemos nos informar, pensar, fazer experiências e no final ouvir o nosso corpo.
    Ficam aqui alguns dos sites em que me baseei para escrever este texto: